Nada mudou nos bairros lisboetas que o Papa Francisco visitou em 2023

“Nada foi feito” nos bairros lisboetas que o Papa visitou em 2023, quando esteve em Portugal e chamou a atenção para vidas como a de Raul, que há 93 anos mora numa casa térrea sem casa-de-banho nem água canalizada.

Nada mudou nos bairros lisboetas que o Papa Francisco visitou em 2023

Raul Nunes Barata nasceu no Bairro da Liberdade, entre o Aqueduto das Águas Livres e o Parque Florestal de Monsanto. Nunca conheceu outra morada. Nunca soube o que era viver de outra forma. Toda a vida carregou bidons para ter água em casa e despejou o bacio na “retrete pública”.

Houve um tempo em que havia fila para a latrina pública. Hoje Raul é dos poucos a dar-lhe uso. No beco mesmo ao lado de casa, há uma retrete pública: um pequeno casebre sem porta que abriga o buraco no chão, tapado apenas com uma tábua de madeira. Todos os dias, o homem de 93 anos despeja ali o bacio.

Raul vive no “231 B” da Rua de São Jacob, numa casa com cerca de seis metros quadrados, onde quase não entra luz natural. Lá dentro há apenas uma cama de ferro rosa enferrujada, que ocupa praticamente toda a largura da casa. Aos pés da cama, junto à parede, está a televisão. 

Foi naquele ecrã que viu a visita do Papa a Portugal, em agosto de 2023. Não quis sair de casa. Na altura, o bairro foi muito falado por causa de casas como a de Raul. Uns dias antes da visita papal, limparam as ruas e os moradores ouviram novas promessas de melhorias. Uns dias depois, caíram novamente no esquecimento.

“Estamos cansados de ser esquecidos. Precisamos que vejam estas pessoas”, apelou Cátia Aparício, nascida e criada no bairro da Serafina, que faz fronteira com o Liberdade.

“Em 2025 ainda há pessoas sem casa de banho nem saneamento básico, que têm de fazer as suas necessidades num balde e despejar para a rua. Ainda temos pessoas a viver em sítios em risco de derrocada”, alertou Cátia, que pertence à Associação de Moradores do Bairro da Serafina e Liberdade (AMBSL).

A casa de Raul é disso exemplo. As paredes são tijolo, cimento e alguns remendos. O telhado é feito apenas de telhas, sem revestimento que o proteja do frio ou do calor. As ligações elétricas estão à vista, umas ainda presas às paredes, outras já suspensas.

“Gostaria de dizer que é um caso isolado, mas é uma realidade de mais pessoas que aqui vivem”, lamentou Cátia, explicando que “rua sim, rua não, há dois, três e quatro casos que já foram retratados várias vezes e continuam sem ser vistos”.

A maioria dos moradores já não quer abrir as portas de casa para mostrar a pobreza. Uns têm vergonha, outros têm medo de serem acusados de estar a denunciar o tráfico de droga crescente e quase todos perderam a esperança de que a exposição pública lhes traga soluções. “Andamos a pedir ajuda há mais de 30 anos e nada”, desabafou Vera Alves, presidente da associação de moradores.

A casa de Raul serviu agora de exemplo. Além da cama enferrujada e suportada por tijolos, o mobiliário resume-se a pouco mais do que um frigorífico, onde colou fotografias de quando era novo, da mulher e da mãe, mas também imagens de “dois ídolos”: Nossa Senhora de Fátima e Álvaro Cunhal. Junto ao frigorifico há um alguidar com água turva para lavar a pouca loiça que tem.

 “Quando a minha mulher estava viva isto estava melhor”, admite. Raul diz não saber limpar nem cozinhar. Junto à cama tem uma mesinha improvisada com uma torradeira e um fogão elétrico de dois bicos onde faz café, chá e pouco mais. A luz é puxada da rua. A água vai buscar à bica pública situada a poucos metros de distância, mas que a idade e o peso dos dez litros que chega a carregar de uma só vez fazem parecer distante.

Com passos pequenos, Raul carrega os garrafões num percurso que sabe de cor. São cada vez menos os que usam a bica e Raul acredita que os outros só lá vão para poupar na conta da água, ao contrário de si, que não tem outra opção.

A falta de água canalizada também prejudica as limpezas. A casa está encardida e tem um cheiro difícil de identificar. A cama de Raul não tem lençóis, só cobertores e vários casacos enrolados na cabeceira a servir de almofada.  

Há uns anos, já viúvo, partiu parte da parede e ocupou a casa térrea do lado. Ganhou mais cinco ou seis metros quadrados onde agora está um guarda-roupa velho e duas pequenas secretárias: Uma parece-se com um pequeno santuário, com várias Nossas Senhoras de Fátima e um Santo António em barro, na outra estão fotografias antigas, em tons sépia, da família, que Raul já não consegue nomear.

Além do que é visível, os moradores deparam-se muitas vezes com infestações de ratos e outras pragas, lembrou Vera Alves.

“Temos pessoas com problemas respiratórios, com asma, por causa das condições em que vivem. Temos casas onde chove como na rua, onde há falta de manutenção”, acrescentou o presidente da Junta de Freguesia de Campolide, Miguel Belo Marques (PS).

A maioria das casas degradadas dos dois bairros são património privado, mas Miguel Belo Marques diz que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) tem mecanismos que poderia usar, como pedir aos proprietários para que façam obras ou, “em situações extremas, tomar posse administrativa e fazer obras coercivas”.

Sobre o número de casas degradadas e a precisar de intervenção prioritária, o autarca socialista aguarda pelos resultados do estudo pedido em 2024 pela CML à Universidade Nova de Lisboa, mas lembra que a população não pode “ficar à espera para sempre, porque o tempo passa e as situações agravam-se”.

A estes problemas, Miguel Marques revela outro fenómeno de casas emparedadas, que foram ocupadas ilegalmente e depois arrendadas a preços especulativos. As vítimas são os arrendatários que chegam a pagar 500 a 600 euros a pessoas que não são proprietárias mas as exploram “como perfeitos agiotas”. Na visita pelo bairro, a Lusa encontrou uma dessas habitações, mas os moradores recusaram-se a falar.

Miguel Marques saúda o Papa Francisco por ter olhado para estes dois bairros de Campolide: “Não se esperava que o Papa resolvesse os problemas, mas ao chamar a atenção esperava-se que houvesse uma maior atenção e impulso da câmara e do Governo”, criticou.

Os moradores, como Cátia Aparício, também se queixam de “não terem respostas da câmara há imenso tempo. O senhor engenheiro Carlos Moedas [PSD] esteve cá, fez imensas promessas, como outros fizeram, mas a concretização é zero. As coisas que estão a acontecer ao nível de pavimentação já estavam previstas, mas a nível social não temos respostas”.

Em vésperas de se celebrar mais um ano da Revolução de Abril, os moradores do bairro da Liberdade sentem-se abandonados. “Há mais de 30 anos que nos prometem melhorias e não acontece nada. Esqueceram a Liberdade”, lamentou Vera Alves, já descrente de medidas que resolvam os problemas de quem “vive à margem da cidade”.

Raul Barata nasceu no bairro há quase um século, há décadas que ouve promessas, mas já não acredita que algo mude. A sua rua foi alcatroada pela autarquia, mas a civilização passou ao lado do nº 231 B.

*** Silvia Maia (texto), António Cotrim (fotos) e Jorge Coutinho (vídeo), da agência Lusa ***

 

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By Impala News / Lusa

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